Em 2015, antes mesmo de estrear em circuito nacional, o filme
`Que horas Ela Volta?`, da diretora Anna Muylaert, já tinha ganhado o prêmio especial do júri no Festival de Sundance, do Panorama de Berlim, além de receber boas críticas das mídias internacionais. Na época, estava sendo cotado para representar o Brasil e disputar uma vaga no Oscar 2016, coisa que não aconteceu.
Para quem desconhece, a diretora é uma das mentes criativas de grandes sucessos infantis dos anos 1990, como `Mundo da Lua` e 'Castelo Rá-tim-bum, ambos da TV Cultura. Anna também dirigiu as produções premiadas `Durval Discos` e `É Proibido Fumar`.
O longa `Que horas Ela Volta?` gerou polêmica em outros países porque mostra uma questão bem conhecida no Brasil, a classe doméstica e sua representação (ou falta de) na sociedade. O filme foi lançado no ano em que a PEC das Doméstica, lei que estabelece novos direitos trabalhistas para a categoria, foi sancionada pela presidente Dilma.
Escolhi a Anna como personagem para um projeto de entrevistas com pessoas influentes que a Elemidia, empresa que trabalho (ou trabalhava), tinha começado chamado de 'SpeedReading'. O modelo em que essas entrevistas eram exibidas não deu muito certo (ainda bem pq eram horríveis e difíceis de ler) e nossa antiga gestão decidiu manter o layout original da marca. Coloquei uma foto no meio das perguntas para ilustrar o resultado final.
Entrevistei a diretora na casa dela, no Alto da Lapa, em São Paulo. Era uma sexta chuvosa e de manifestações na cidade, se conhecem um pouco de SP sabem que no fim desse dia tudo virou um caos. Ela mora em uma residência bem legal, arborizada e típica de quem faz arte.
Anna Muylaert trabalha em um universo dominado por homens. Consciente, ela sabe enxergar as mudanças de seu setor em relação às mulheres, mas sem esquecer que assim como mostra em seu filme, o machismo muitas fezes nasce com elas.
Qual foi sua principal inspiração para
fazê-lo?
Foi a
maternidade. Quando eu tive filho, o José que tem 20 anos agora, eu fui aos poucos percebendo a nobreza desse trabalho de ser mãe e
reparei como ele é desvalorizada no Brasil e na América Latina inteira.
Poxa, o trabalho mais nobre e o mais desvalorizado e que inclusive os homens
pulam fora no trabalho de educação do filho. Fiquei sabendo outro dia que o
Bolsa Família 100% é todo dado em mão de mulher, então vendo esse desinteresse dos pais pela educação e consequência
disso entrega-lo nas mãos de uma terceira pessoa que seria a babá e como isso é
uma prática muito comum no Brasil. Eu quis fazer um filme que falasse
não só da questão da educação mas também da social que e a figura da babá representa.
Você se surpreendeu com o prêmio?
Quando
você vai para um festival concorrido, não se surpreende se ganhar um prêmio e
nem se não ganhar, faz parte do jogo. Eu sei que o filme era competitivo e
fiquei feliz em ter ganhado, mas não surpresa.
Em que um prêmio muda a relação das pessoas
(produtores, atores) com você e com seu trabalho?
Em termos
pessoais meus, muda. Faz 30 anos que entrei na ECA para fazer cinema e acho que
quando se ganha prêmios como esses é uma realização muito grande. Eu tenho a
sensação que alcancei uma coisa que queria muito quando entrei na faculdade. Eu
tive um ganho pessoal, estou mais segura. Na relação com as pessoas eu já não
sei, não aconteceu nada que determine isso. Ninguém me chamou para trabalhar,
não houve um movimento assim ainda.
Ao que você atribui as boas
críticas e o sucesso, sendo que o filme tem uma linguagem especifica e um tema
complicado no país.
O filme no Brasil é percebido de um modo bem diferente que do pessoal de
fora. A
própria estrutura do filme está apontando o código de regras e de comportamento
social de classes, a personagem da filha da empregada vem para quebrar essas
regras. No Brasil, até onde sei, as pessoas veem e sentem
um constrangimento em relação ao tema da empregada ,que todo mundo vive de um
lado ou do outro da porta da cozinha. No exterior rapidamente o debate sai da doméstica e passa a ser das relações
humanas universais, onde essas divisões de classe acontecem o tempo todo. Na Europa fica mais um nível teórico, o filme tem um
humor que para eles é muito forte e lá essa característica da alegria e muito
destacada. É um filme muito sério sobre questões humanas pertinentes e
ao mesmo tempo político, afetivo e divertido, por isso foi um sucesso.
Qual a diferença entre seu filme e a
comédia as `Domésticas`?
É uma
diferença absurda. As `Domésticas' é filmado do ponto
de vista da sala, ele vê a empregada do ponto de vista da sala, goza dos modos,
do jeito de falar errado. Uma bizarrice. O meu é do ponto de vista da
cozinha, o objeto que vai ser gozado e o patrão.
A câmera está em lugares muito diferentes.
Você acha que esse filme agradou
a classe das domésticas?
Eu só
mostrei para umas cinco domésticas até agora e elas ficaram bem tocadas.
Algumas choraram, ficaram mudas. O filme revela esse código que a gente não
costuma conversa.
PEC das domésticas, opinião?
Ótimo. Eu
acho que é um processo irreversível, uma tentativa e um sucesso do governo
do PT de tirar as empregadas do saco do
escravagismo. Essa é uma das profissões que mais rasto essa questão,
tempos atrás nem era considerada uma profissão e a PEC está profissionalizando isso.
Na sua opinião, por que
ainda tem poucas mulheres trabalhando na área cinematográfica? (Direção,
roteiro)
No Brasil
tem muito mais mulher dirigindo do que na França, talvez aqui seja o país onde
mais tem mulher. Eu acho que a mulher como um todo está ocupando cada vez mais
espaço.
Qual seria solução para se ter
uma igualdade nesse setor?
Eu acho que o machismo nasce na mulher, vem de mãe, que em muitas
situações toma o partido do pai. Nessa hora, o machismo está sendo plantado, acho
que temos que cada vez ficar mais atentos com as práticas machistas de
desvalorização da mulher tanto com a gente quanto dos nossos filhos.
Você enfrentou alguma dificuldade nesse
mercado por ser mulher? Qual?
Eu nunca
senti dificuldade por ser mulher, mas eu sempre ganhei menos que meus parceiros
homens durante muito tempo e foi preciso muita análise. A mulher tende a trabalhar mais e ganhar menos e o homem
tem aquela coisa narcisista de sempre se valorizar e a mulher já e o
contrário, talvez uma humildade maior.
Você enfrentou alguma dificuldade
nesse mercado aqui no Brasil? Qual?
É um mercado
muito difícil, quase impossível e nem sei se vou continuar (risos). Depois de
30 anos de carreira, cada vez eu acho mais difícil porque não é uma carreira
que tenha continuidade. Se eu não sentar e eu mesma fizer, nada vai acontecer.
É difícil caracterizar como profissão hoje e olha que sustentei meus filhos
sozinha fazendo isso. Diretor de cinema e tão difícil que eu quase nem
considero como profissão, to achando que é hobby.
Que diferença você acha que há
entre o cinema feito no Brasil e em países como México e Argentina?
De modo geral,
a educação na Argentina é bem melhor que no Brasil,
eles são mais intelectuais e cultos que a gente e consequentemente o cinema é
melhor, porque existe um padrão. Aqui existe uma influência muito forte
da TV, uma coisa meio inversa. Na Argentina tem muito mais conhecimento na
estrutura dramática, o cinema deles parte de um padrão mais alto. Os filmes de maiores sucessos daqui partem de um padrão de
um programa humorístico da Globo.
O que falta no cinema brasileiro?
Acho que
falta na educação brasileira e no cinema. Existe um despreparo geral.
Por que a produção
cinematográfica atual privilegia comédias?
Privilegia
tudo que a Globo mostra e que repete no cinema.
Você começou como roteirista no
Castelo-RÁ-TIM-BUM e Mundo da Lua, o que isso te ajudou no trabalho como
diretora?
Eu
aprendi a estrutura dramática e a escrever, com isso eu tenho uma liberdade
muito grande porque dirijo meus próprios projetos. Direção de cinema exige um
conhecimento em várias áreas e talvez a principal delas seja estrutura
dramática.
O que você acha das leis de
incentivo à cultura do país? E como você vê o trabalho da Globo filmes?
A maioria
dos filmes nem vem pela lei de incentivo, vem por editais. Poucas pessoas
conseguem captar recurso em empresas privadas, a maioria e ligados a
publicidade. Maior parte da verba vem de editais federais ou da lei
audiovisual. É uma ótima ajuda para uma retomada,
mas espero que um dia o cinema seja uma indústria que investimos e retomamos o
dinheiro sem precisar de incentivo do governo.
Quais são suas influências no
cinema ultimamente?
Ultimamente
os irmãos Cohen, filme uruguaio `Whisky`, `Som ao Redor`. Cinema do Claudio Assis e
da visceralidade dele.
Qual filme marcou sua vida e por
quê?
Laranja Mecânica porquê é um filme paradoxal o tempo inteiro, até no nome.
Ele tem uma perfeição técnica e um nível de criatividade que atinge todas as
áreas do filme. É uma sinfonia de um mestre
chegando no ápice.
Qual seu futuros projetos
(cinema/tv)? Como a vitória em Sundance pode influenciá-los financeiramente.
Eu estou
terminando o filme “Mãe só há uma” e estou parando para balanço (risos).
Estou cansada e sem dinheiro.
Qual sua opinião sobre o Oscar? O
que mudaria nele se pudesse?
Eu
gostaria que eles premiassem os melhores filmes do ano e não os mais ou menos
(risos).
O Oscar está em seus planos? Se
ganhar qual será o discurso?
Falta
muito para eu fantasiar meu discurso no Oscar.
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