flickr |
Esqueça tudo o que você pensa que sabe sobre Fernando Fernandes, esqueça que ele participou da segunda edição do reality show Big Brother Brasil, esqueça que ele namorou celebridades e esqueça que ele já desfilou para Calvin Klein. Fernando não renega seu passado, mas foram outros acontecimentos que mudaram seu jeito de seguir a vida e o modo como passou a ser visto pelas pessoas. Em 2009, um acidente de carro em São Paulo fez com que o modelo sofresse uma grave lesão medular e perdesse os movimentos das pernas. Ganhou uma companheira; a cadeira de rodas. Depois de internações, hospitais e muita fisioterapia conheceu a canoagem e se apaixonou. A relação com o esporte fez com que ele se tornasse o primeiro brasileiro campeão mundial de canoagem. De lá para cá, o atleta conquistou dois campeonatos pan-americanos, três sul-americanos e quatro mundiais. E assim começava a nova história de Fernando
Você sempre gostou
de esporte, jogava futebol de base e praticava boxe, como essa ligação te
ajudou após o acidente?
Me ajudou totalmente. Se eu não tivesse o esporte
hoje em dia, eu não estaria tão bem quanto eu estou. Quando eu vi que poderia
praticar esporte, eu percebi que teria alternativa de viver de uma forma
diferente fazendo uma coisa que sempre gostei. Só que agora tive que descobrir
formas diferentes de fazê-lo, na verdade tive que reaprender a viver, no geral.
O esporte te alimenta, ele me trouxe para a vida novamente.
Qual foi o processo
mais difícil no processo de adaptação na cadeira de rodas?
O mais difícil foi lidar com o que a lesão medular
causa. Eu posso treinar e ser um cara super ativo, mas eu tenho que ter
consciência de que os lugares que eu não sinto no corpo são frágeis e eles
podem fraturar e eu nem perceber. Uma das maiores dificuldades foi lidar com o tempo
de descanso. Alias, ter que aceitar meu corpo e saber que cansado ou não
obrigatoriamente eu tenho que ter uma pausa, senão posso ter uma lesão na pele.
Da cintura para cima eu sou um atleta que treina bastante e da cintura para
baixo eu sou como uma criança, que pode ter vários problemas e pode se
machucar.
Você foi para
Brasília depois do acidente, como foi esse processo?
Depois do acidente eu fiquei um mês no hospital, um
mês em casa e no terceiro eu consegui uma vaga no hospital Rede Sarah, em Brasília,
o que para mim foi uma coisa fundamental. Lá, tive a oportunidade de ver a
realidade de outras pessoas e ali eu vi que meu problema era só mais um e
muitas vezes menor do que de outras pessoas. A Sarah serviu muita para eu
acordar e ter uma real consciência dos fatos
Como é o trabalho
no Sarah?
O que se acredita no Sarah é que quem vai se
reabilitar é o corpo do paciente. É uma reabilitação para vida, o corpo que vai
responder a esse processo. Eles vão estimular isso com várias atividades
sabendo que a lesão medular depende da medicina também. Foi lá que eu aprendi a
fazer as coisas de uma maneira diferente. Eles trabalham com um número restrito
de pacientes para fazer um trabalho de qualidade.
Qual o maior
desafio de um cadeirante na cidade?
Sair de casa (risos). A partir do momento que você
saí de casa é uma dúvida, porque você não sabe o que vai encontrar e isso não
só no Brasil. Eu estive na Áustria, país de primeiro mundo, nas ruas tem
acessibilidade porque depende do governo e é bem feito, mas para entrar em
lojas e restaurantes não é possível porque falta esse acesso. O maior desafio é
se propor a ir para o mundo. Não tem condição de cadeirante andar na rua, só se
for ao meio da rua.
O que o governo
brasileiro pode aprender com outros países em questão de acessibilidade?
Nosso país cresceu desordenadamente, não somos
planejados igual Nova York. Lá fora é tudo organizado. No Brasil a culpa não é
só do governo, quando fazemos uma casa ninguém se preocupa com a frente dela,
se alguém vai conseguir passar ou não. Precisamos nos organizar, essa
organização que vai trazer a acessibilidade, vamos educar as pessoas desde
criança a conviver com todos, não só com cadeirante Nós não temos respeito com
os idosos, e eles também precisam de acessibilidade, assim como obesos e
gestantes.
Como atleta, o
Brasil está preparado para receber eventos esportivos como as paralimpíadas?
Ainda não, eu não estou vendo ser feito nada. É
tudo questão de logística, vamos deixar tudo para última hora porque nós não
nos planejamos para nada. Eu achei que a copa foi um evento muito legal, mas
deixou a desejar em vários aspectos, como a organização. A gente tem que parar
com o jeitinho brasileiro, isso fez com que a seleção tomasse de 7 a 1 da
Alemanha, porque acreditamos que o jeitinho brasileiro no fim das contas vai
dar certo. Chegou um momento em que apesar de tudo errado que acontece, o mundo
está organizado.
A Alemanha se organizou para estar aqui, criaram um
hotel, contrataram moradores da região para trabalhar, hoje em dia esse hotel
funciona assim como uma escola que eles fizeram. Um país de fora se organiza no
nosso país, ganha na nossa casa, pisa na nossa cabeça e a gente acha que está
tudo certo, tudo bonitinho. Enquanto tivermos essa mentalidade de jeitinho
brasileiro, vamos levar só porrada.
Está na hora de enxergarmos o esporte como uma
ferramenta política, nós ainda não entendemos o quanto o esporte pode
influenciar na nossa cultura, economia. O esporte é o reflexo do que é o país,
o que é o Brasil? Um país que dá certo em algumas coisas que tem que dá certo,
e muitas vezes não entendemos, tem gente que não esperamos e ganha as
olímpiadas, ou seja, não tem um planejamento.
Você já competiu em
outros países, como é infraestrutura para esse tipo de competição e qual principal
diferença em relação ao Brasil?
O direcionamento da verba, a organização, o
pensamento deles. O ciclo olímpico não começa agora, ele já começou dois anos
atrás quando acabou a olímpiada. Aqui nosso ciclo vai começar agora, as
empresas vão começar a investir perto do show. Os atletas de outros países têm
uma estrutura durante um grande período de tempo
Você acha que o
Brasil incentiva o esporte da maneira que deveria? Existem categorias
privilegiadas, como futebol?
Ele incentiva agora por causa dos jogos olímpicos,
mas não da maneira certa, ele não vê o poder do esporte. Existem categorias
mais organizadas do que outras, como o judô. O futebol é um caso a parte, ele
passou de um esporte para um show, pois é um investimento que dá certo e tem retorno.
Quem se organiza é quem entende que esse dinheiro que está chegando e de que melhor forma
distribuir
De que forma o
Brasil trata seus paraesportistas?
Acho que tem evoluído muito, me surpreendi com o
comitê paralímpico. Depois da minha lesão eu comecei a acompanhar o trabalho
feito por eles e hoje em dia é uma surpresa para mim a forma como é
administrado, como os atletas são valorizados, como as paralimpíadas escolares
são valorizadas. Eles educam. O único ponto falho para mim é se preocupar em
criar oportunidades de iniciação, faltam veículos com lugares que se propõe dar
essa oportunidade.
Qual a maior
dificuldade que você encontrou ou encontra no meio esportivo?
A iniciação, não tem aonde começar e nem material.
Eu sei que o cadeirante não pode sentar em qualquer canoa e sair remando, por
isso aqui é tudo adaptado, tem um encosto com uma almofada em baixo para não
lesionar. Essa é a diferença, tem que ter todo esse processo para começar.
E a mais legal?
O prazer em remar. O caiaque virou minhas pernas, eu
posso remar aqui, A canoagem foi a melhor coisa que aconteceu, é meu lifestyle,
meu ganho pão, meu tudo. Até minha namorada veio da canoagem (risos)
Como você descobriu
a canoagem?
Eu conheci a canoagem na Rede Sarah, eles usam o
esporte como ferramenta de reabilitação e quando sentei no caiaque vi que tinha
grande possibilidade de fazer as mesmas coisas que fazia antes e na mesma
intensidade. Lá em Brasília eu procurei por onde começar fui escondido porque
eu não poderia fazer atividade fora por causa do risco de lesão. No começo era
uma canoa canadense, não era adaptado, mas eu tinha o mesmo prazer em remar que
o professor e mais liberdade na água do que tinha na terra. Eu voltei para São
Paulo e conheci meu treinador que me direcionou para a parte competitiva do
esporte. Um ano depois de eu ser campeão de canoagem adaptada, a canoagem virou
um esporte paraolímpico e minha imagem de modelo ajudou um pouco para o esporte
alavancar.
De que modo o
esporte pode se tornar mais conhecido no Brasil?
Acho que faltam os atletas da canoagem divulgarem o
quanto é bom praticar esse esporte, assim como é feito com o surf e
com o skate.
Você usa uma órtese
que dá sustentação à perna, Qual a sensação de ficar em pé depois de cinco
anos em uma cadeira de rodas?
Tontura (risos). Eu já ficava assim de vez em
quando só que não expunha isso para as pessoas para não acharem que ia iria
voltar andar. Isso não depende só do meu esforço físico, depende do avanço da
medicina e da ciência. Do momento que publiquei a foto até agora as coisas
evoluíram bastante, o estudo em humanos com células tronco nos EUA foi
liberado, a Redbull veio com um projeto monstruoso que arrecada dinheiro para a
cura da lesão medular que aconteceu simultaneamente em 40 países e esse projeto
vai existir até acharem a cura.
Para que serve essa
órtese?
Para estimular o osso a não perder a força e para a
cabeça é legal, antes eu via tudo de 1,90 agora eu vejo as coisas de 1,50.
Recentemente você
disse que existem falsos deficientes competindo, você acha que esse tipo de
situação acontece porque não tem uma fiscalização necessária.
Na verdade são falsas deficiências, o atleta tem
uma lesão, mas ele finge ser mais séria do que realmente é, e acabam levando
vantagem na competição. Esse tipo de acontecimento chama doping funcional, e
ninguém nunca se preocupou muito com isso porque o esporte paralímpico sempre
foi visto como inclusão social, mas acabou agora não é mais isso, é um monte de
atleta querendo ganhar. Temos que levar mais a sério e tratar como esporte de
autorendimento. Os classificadores não usam tecnologia para verificar
certas coisas, eles usam só o visual mesmo e o laudo médico que não diz muita
coisa, só quem tem a lesão sabe o grau de cada doença.
Como surgiu a ideia
da Instituição Fernando Fernandes Life?
As pessoas me cobravam sobre querer um lugar para começar
a fazer paracanoagem em São Paulo e eu nunca tinha essa resposta, porque não
tem onde começar. Chegou um momento que eu quis proporcionar para as pessoas o
que a canoagem me proporcionou como auto- estima qualidade de vida e iniciação
em atividade esportiva. Fiz o projeto, chamei parceiros e começamos sem
patrocínio nenhum, com dinheiro do bolso, depois de três meses conseguimos o
apoio da Caixa loterias, que é fundamental. Hoje nós funcionamos ainda não da
forma que queremos, a ideia é levar o instituto para todo Brasil e para todos
os lugares.
Como é feito o
trabalho com as crianças?
Nós trabalhamos com a autoestima e qualidade de
vida. Temos algumas crianças fixas que vem todo fim de semana, tem crianças que
vem de outras instituições como AACD, dos CEUS aqui da região. No sábado, a
atividade é aberta para todas as pessoas. O objetivo é se organizar cada vez
mais, ter um público fixo, mas para isso precisamos do apoio financeiro. Queremos
fazer atividades extras com as mães, porque elas sofrem muito nesse processo. A
intenção do instituto é unir e não separar, colocar todos nos mesmo barco e
sair remando.
Quais são seus
objetivos?
Meu objetivo principal é ganhar as paralimpíadas de
2016 e que meu instituto cresça cada vez mais.
*Entrevista feita originalmente para Elemidia (2014) e usada para o site experimental do curso Técnico em Multimídia do Senac (2016)
Comentários